Perda de renda, dificuldade de adaptação ao ensino remoto e medo da Covid-19 fez Educação de Jovens e Adultos encolher
Aos 60 anos, Maria das Graças de Morais conquistou parte de um sonho, sentou pela primeira vez em uma carteira escolar para assistir aula. Sem nunca ter frequentado escola, seu maior desejo é aprender a ler e escrever.
Apesar de ter começado as aulas a menos de um mês, Maria das Graças já encontra dificuldades para continuar estudando durante a pandemia. Ela tem esbarrado nos mesmos empecilhos que, ao longo da crise do coronavírus, já tiraram ao menos 60 mil pessoas da EJA (Educação de Jovens e Adultos) somente no estado de São Paulo.
Historicamente marginalizada pelas políticas educacionais, essa modalidade de ensino ficou ainda mais fragilizada com a suspensão das aulas presenciais e os efeitos econômicos e sociais da pandemia nos alunos.
Só nas escolas estaduais, o número de matrículas nesta etapa caiu 31% de janeiro do ano passado para o mesmo mês de 2021 —com a saída de 56,7 mil alunos. Já nas escolas municipais da capital, a redução foi de 7,4%, com a perda de 2,2 mil estudantes.
O número pode ser ainda maior já que a modalidade também é ofertada em escolas municipais de outras cidades e, em menor número, na rede particular.
Maria das Graças está matriculada no colégio Santa Maria, unidade privada na zona sul da capital, que oferta essa etapa de ensino gratuitamente. Ela conta ter esperado completar 60 anos para ter gratuidade no transporte público para chegar à escola.
No entanto, neste ano ela não teve direito ao benefício, que foi cortado da população de 60 a 65 anos pelo governador João Doria (PSDB) e pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). Para não parar de estudar, ela tem feito a pé o trajeto de sua casa até a escola.
“A passagem é muito cara e não conseguiria pagar durante todo o mês. Eu e uma amiga, que também estuda lá, vamos a pé. É uma caminhada de 1 hora e 10 minutos, nós vamos conversando. O maior problema é a volta já que as aulas terminam às 22h30.”
Ela tenta conseguir o bilhete único estudantil para ter gratuidade no ônibus. Enquanto não consegue, Maria das Graças conta com a ajuda da filha para pagar o transporte nos dias de chuva ou quando não tem a companhia da amiga para voltar da escola.
“Não vou desistir, não tenho preguiça. Pela primeira vez na vida, tenho apoio para estudar. Chegou a minha vez”, conta. De uma família de 7 filhos, ela começou a trabalhar na roça aos 6 anos no interior de Minas Gerais e nunca frequentou a escola.
“Meu sonho é aprender a ler. A gente passa muita humilhação por não saber, tem que enxergar pelo olho do outro. Quero não depender de ninguém para ir nos lugares, quero ter uma carteira assinada, um emprego bom.”
O colégio Santa Maria registrou uma queda de 20% de alunos no EJA neste ano, cerca de 150 pessoas deixaram de estudar.
Mais de 70% dos alunos dessa etapa no colégio têm perfil semelhante ao de Maria das Graças. A maioria são mulheres, acima dos 50 anos e que sempre tiveram empregos informais —grupo que também foi o mais afetado com a pandemia.
“Os alunos não pararam de estudar porque desistiram, mas pela falta de condições financeiras. Muitos deles, até os mais velhos, tiveram que voltar a trabalhar ou não conseguem mais pagar a passagem de ônibus para vir até a escola”, conta Maria Cecília Ferraiol, diretora do colégio.
No colégio Santa Cruz, na zona oeste da capital, a evasão também alcançou quase 30% dos alunos. Fernando Frochtengarten, diretor da unidade, também avalia que a saída se deve à maior vulnerabilidade dos estudantes dessa etapa.
Além dos problemas financeiros que surgiram durante a pandemia, a maioria não conseguiu acompanhar as atividades remotas por não ter equipamento e internet em casa e pela dificuldade de usar a tecnologia.
“A maior evasão aconteceu entre alunos que estavam no ciclo da alfabetização, que é onde estão as pessoas mais velhas e mais vulneráveis. É uma etapa que exige muita aproximação do professor e foi muito difícil fazer a adaptação para o ensino remoto.”
O colégio avalia que parte dos alunos pode retornar quando as aulas presenciais para essa etapa voltarem a acontecer. No entanto, Frochtengarten diz que muitos já perderam o vínculo com a escola por mudanças no trabalho e por conta da doença do coronavírus.
“A condição social desses alunos nitidamente piorou. Temos casos de pessoas que se mudaram por não conseguir mais se sustentar em São Paulo, empregados domésticos que tiveram de viajar com os patrões, precarização das condições de trabalho e quem se afastou por ter ficado doente ou ter de cuidar de parentes adoecidos”, relata.
Principal responsável pela oferta de EJA no estado, a Secretaria Estadual de Educação diz que a redução verificada entre janeiro do ano passado e o mesmo mês de 2021 ainda é um dado preliminar. A pasta afirma que novas matrículas devem ocorrer até maio.
Caetano Siqueira, que chefia a coordenadoria pedagógica da pasta, diz que a queda verificada nas escolas estaduais foi mais acentuada entre alunos mais novos, de 19 a 22 anos. “É uma população mais jovem, que pode ter priorizado outras atividades durante a pandemia.”
Segundo ele, a secretaria deve intensificar nas próximas semanas a veiculação de uma campanha de busca ativa para essa etapa, ação que já vinha sendo desenvolvida pelas escolas.
Siqueira também disse que a pasta comprou neste ano livros didáticos desenvolvidos especialmente para a EJA. O governo federal suspendeu a compra de obras específicas para essa etapa em 2016 e, desde então, São Paulo utiliza o material feito para alunos do ensino fundamental e médio com os adultos.
A Prefeitura de São Paulo também diz que as escolas mantêm campanha de busca ativa para que os alunos dessa etapa voltem a estudar, agora que as escolas reabriram. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, as unidades se esforçaram para manter o contato pelas redes sociais e, em algumas delas, os professores foram até mesmo à casa dos estudantes.
Para professores e coordenadores de turmas de EJA, o aumento da evasão não é resultado apenas dos efeitos da pandemia, mas também do abandono, que se repete há anos, dessa etapa nas políticas públicas educacionais.
Uma das primeiras ações do governo Jair Bolsonaro (sem partido) na educação foi extinguir a Secadi, secretaria responsável por ações de desenvolvimento da EJA, no Ministério da Educação.
No governo Temer, o único programa de alfabetização de adultos teve queda de repasses. Desde 2016, o governo federal também deixou de comprar livros didáticos e de ter políticas de formação de professores para atuar nessa etapa de ensino.
Com esse cenário, as matrículas na EJA vem caindo ano a ano. De 2010 a 2019, a queda foi de 30%, passando de 4,2 milhões para 3 milhões de alunos. O público potencial para essa etapa é muito maior, já que o país tem 11 milhões de pessoas de 15 anos ou mais que não são capazes de ler e escrever nem ao menos um bilhete simples.
Folha de SP
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