Presidente do Banco Central afirma que teve de acelerar em dois anos a implementação do Pix por causa da pandemia da Covid-19
A pandemia da Covid-19 trouxe ao mundo uma nova dinâmica, em que as pessoas ficaram impedidas —por medo ou imposição— de circular livremente. O isolamento social também gerou mudanças substanciais no sistema financeiro. Pagar contas e transferir dinheiro a distância virou regra para muitos.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse em entrevista à Folha que se viu obrigado a acelerar a agenda de inovação e a implementação do sistema de pagamentos instantâneos, o Pix, que estava prevista para 2022.
Segundo ele, os grandes bancos queriam que as instituições menores tivessem menos poderes no open banking.
O presidente da autarquia, no entanto, disse considerar que o sistema ficará menos concentrado e que as grandes instituições terão menor participação em um sistema maior do que ele é hoje.
Além disso, a autoridade monetária quer o desenho da nova moeda digital pronto até o fim de 2022.
Sobre a entrada do WhatsApp e outras big techs —grandes empresas de tecnologia— em meios de pagamentos, ele disse ver com bons olhos e que não tem interesse em frear esse movimento.
A agenda de inovação do sistema financeiro avançou muito no último ano, qual foi o papel da pandemia e do distanciamento social nesse processo?
Uma das características principais dessa crise é que a recuperação seria induzida por um movimento de aceleração nas inovações tecnológicas, então decidimos não só não adiar essa agenda, mas acelerar. Tivemos de antecipar o processo.
Em quanto tempo foi antecipado? Qual foi a primeira data fixada para a implementação do Pix?
Na primeira vez que falamos em pagamentos instantâneos, a data proposta [pela equipe] era 2023. Eu queria para 2020.
Aí fomos olhando a plataforma, a parte de tecnologia e o que precisava para fazer funcionar. Não podíamos colocar todas funcionalidades ao mesmo tempo. Então fixamos em 2022.
O prazo dado pelo BC foi suficiente para que os bancos se preparassem?
O Pix foi bem faseado, tivemos várias etapas e foram feitas consultas. Mesmo depois de implementado, será feito em fases.
Primeiro vai ter o registro e outras funcionalidades começarão a funcionar depois, como cashback [termo em inglês que significa dinheiro de volta] e pagamento programado, por exemplo.
É óbvio que, quando se tem inovação que gera mudança, a tendência natural é dizer que está muito rápido, que precisa de mais tempo, mas precisamos andar na velocidade da tecnologia.
Em meio à pandemia, houve alguma dificuldade no processo de implementação da nova infraestrutura? Houve resistência por parte dos bancos?
Em relação ao Pix, o sistema financeiro estava preocupado com a velocidade de implementação da tecnologia e o fato de ter de fazer muitas mudanças com as pessoas trabalhando em casa. Mas acho que isso já passou, já temos várias instituições financeiras registradas.
Havia também uma preocupação com o processo de registro das pessoas, para não gerar fraudes, mas temos monitorado para que isso não aconteça.
Com relação ao open banking, existiu uma resistência maior em relação à governança, bancos maiores queriam ter mais governança porque tinham mais participação no mercado.
Não achamos que esse é um jogo de soma zero, que quando um cresce o outro diminui, achamos que esse é um jogo onde todos crescem e começamos a ter segmentação.
A bancarização vai aumentar muito. Durante a pandemia, colocamos 40 milhões de pessoas no mundo digital bancário por meio da Caixa Econômica [com o auxílio emergencial]. No final, os grandes bancos vão ter um pedaço menor de uma torta muito maior.
Um diretor do BC disse recentemente que o maior medo dos bancos com relação ao open banking é perder a relação direta com os clientes. Como o sr. vê isso?
Como regulador, nosso papel é de disciplinar a entrada das instituições e de ter certeza de que será um processo competitivo, que vai melhorar o serviço para quem está na ponta. Precisa ser mais barato, mais rápido, mais seguro, mais transparente e aberto.
O que gerava maior incerteza nos bancos grandes eram os dados. A indústria financeira está virando uma indústria de dados.
Se eu tenho mais informação sobre o cliente, sei o quanto posso dar de crédito e quais são os produtos que ele vai querer. Só que, na verdade, a informação do cliente é dele, não é do banco.
O consumidor precisa usar suas informações em benefício próprio, para ter mais produtos financeiros em custo mais acessível.
Por que o BC iniciou o processo e não deixou que o mercado se movimentasse para depois regular?
A tendência natural do mercado era migrar para algum tipo de pagamento instantâneo, mas, olhando o que aconteceu em outros países, aprendemos algumas lições.
Se há formação de várias centrais de liquidação instantânea [nas quais o dinheiro passa de uma conta para outra] ao mesmo tempo, gera fragmentação de mercado e o regulador não consegue enxergar o que está acontecendo.
Na China, por exemplo, isso levou a um aumento grande de fraudes e estão voltando atrás para tentar fazer a integração de liquidação.
Recentemente surgiram novas soluções de pagamentos que envolvem big techs, como WhatsApp e Google. É uma antecipação ao Pix, que vai concorrer com o mercado de cartões, ou um movimento natural do mercado?
Ter mais opções para o cliente final é sempre melhor.
Quando entramos em um país onde a competição é mais viva, no supermercado a primeira coisa que surpreende é a quantidade enorme de variedade de produtos na prateleira. Com o mercado financeiro é parecido, quanto mais variedade para o cliente, melhor.
O que está acontecendo com o WhatsApp Pay, com o Google Pay, e outras plataformas é muito saudável. Queremos que venham para o Brasil.
O WhatsApp deve começar a operar a primeira parte, que é o P2P [transferências], em breve. Queremos que o Google também venha e que o PayPal faça mais negócios no país.
Nosso interesse não é frear nenhum movimento, é fazer com que tenha competição.
O BC pretende autorizar o WhatsApp Pay? Quais foram as adequações propostas para que seja liberado?
Entendemos que o artifício usado na montagem do arranjo de pagamento deles foi elaborado para quando se começa muito pequeno. Nele, quase não há exigência regulatória porque a relevância no mercado é pequena. Eles entraram nesse sistema, mas com uma plataforma enorme.
Eles têm 120 milhões de clientes, não são pequenos, apesar de começarem com um número baixo de operações. Então pedimos que entrassem no mesmo processo de autorização em que os outros entraram.
Foi discutido qual era o papel do WhatsApp Pay [na cadeia de pagamentos]. É iniciador de pagamento? Um facilitador?
A empresa dizia que era uma facilitadora. Mas, se ela escolhe quem é o adquirente e conecta os clientes, é um iniciador de pagamentos.
A ideia também era tentar entender qual é a função do aplicativo nisso. Foi um aprendizado para eles também.
Mas agora estamos evoluindo, temos reuniões a cada duas semanas e devem começar a operar em breve, do mesmo jeito que o Google vai operar e que o PayPal vai começar a fazer coisas diferentes.
A autoridade monetária estuda emissão de dinheiro digital, como seria essa nova moeda?
Está em estudo. Atualmente, o BC está trabalhando nas perguntas, muitas ainda não foram respondidas. Por exemplo: essa moeda deve ter rendimento? Deve ser rastreável? Deve ter custódia sempre no BC? Deve ter emissão exclusiva na autoridade monetária ou qualquer banco que bloquear dinheiro teria direito de emitir a moeda? Como essa moeda deve transitar?
Vamos delinear qual é o projeto que é interessante para a gente.
É importante ver a experiência de outros países e ajustar para a nossa realidade. A expectativa é que pelo menos a ideia do que vai ser e de como será a implementação fique pronta em 2022.
Essas inovações surgem no mesmo momento em que tivemos o lançamento da nova nota de R$ 200 por causa do aumento da demanda por papel-moeda, não seria uma contradição?
O BC tem sempre um estoque de papel-moeda e faz projeções para cenários de estresse e de entesouramento, ou seja, a população guarda dinheiro em casa e ele não circula.
Quando começou se falar em pagamento do auxílio emergencial, foi simulado um cenário, mas a primeira informação que nos chegou é que seriam duas parcelas, no máximo três, com valores mais baixos. Depois, foi decidido que as parcelas seriam muito maiores e com prazo elevado.
Além disso, veio a antecipação do FGTS.
Aliado a isso, tivemos um processo de entesouramento normal, mesmo pessoas de classe média e classe alta guardaram dinheiro em casa. Isso no começo, agora já normalizou.
No nosso cenário de estresse, vimos o risco de não ter papel-moeda.
Fazer o projeto de uma nota do começo ao fim levaria ao menos dois anos, e tínhamos dois meses. Já existia o projeto do lobo-guará.
Folha de SP
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