As queixas vão desde a falta de equipamentos de proteção até a aplicação irregular dos acordos de redução salarial e à falta de controle da jornada do home office (Por Marina Barbosa)
Além de golpear a saúde, o novo coronavírus atingiu em cheio a economia e o emprego dos brasileiros. Por isso, os últimos meses foram de muitas mudanças, dúvidas e impasses no mercado de trabalho. A necessidade de migrar de maneira rápida para novas formas de trabalho, adequadas aos cuidados necessários ao combate da covid-19, acabou colocando empregados e empregadores em lados opostos em diversos momentos da pandemia. Não à toa, o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu mais de 29 mil denúncias relacionadas à covid-19. As queixas vão desde a falta de equipamentos de proteção até a aplicação irregular dos acordos de redução salarial e à falta de controle da jornada do home office. E representam mais da metade de todas as violações trabalhistas observadas desde o início da pandemia.
Por isso, o MPT precisou instaurar 6.690 inquéritos civis para apurar irregularidades decorrentes da covid-19 e tem buscado soluções alternativas de mediação, como a conciliação e o envio de recomendações de saúde e segurança para as empresas. O órgão atuou em ações que garantiram fornecimento de equipamentos de proteção e auxílio financeiro aos entregadores de aplicativo, limpeza dos carros de aplicativo, adoção de medidas sanitárias nos frigoríficos e pagamento integral das verbas rescisórias em casos de demissão coletiva. Quem coordena esse processo é o procurador-geral do Trabalho, Alberto Bastos Balazeiro, que está à frente do MPT há um ano e contou ao Correio os desafios trazidos pela covid-19 ao modo de trabalhar e de fiscalizar a legislação trabalhista no Brasil.
Mercado A pandemia afetou muito o mercado de trabalho e o modelo de produção. Houve aprofundamento das entregas e do delivery, inclusive em atividades que nunca foram feitas dessa forma. Houve redução de postos de trabalho, tanto pela queda da atividade econômica quanto pela mudança do emprego. Esse cenário gera uma preocupação com o aumento do desemprego. Então, estamos tentando contribuir com mediações e conciliações, para que haja menos desligamentos. Foram recebidas mais de 55 mil denúncias desde o início da pandemia e 52,6% delas estão associadas à covid-19 (28,93 mil). É muita coisa, desde falta de equipamento de proteção pessoal até fraudes trabalhistas, inclusive relacionadas à MP 936 (do programa emergencial de manutenção do emprego).
Reclamações As primeiras denúncias foram de falta de equipamento de proteção individual, mas, também, surgiram questões mais específicas em setores que demandam uma atuação mais focalizada, como frigoríficos, telemarketing, professores, domésticos. Houve problemas em empresas que reduziram o salário, mas não reduziram a jornada de trabalho, e houve utilização inadequada dos instrumentos de redução salarial e suspensão do contrato de trabalho. Mas, também, houve problemas relacionados a negociações coletivas, não pagamento de verbas rescisórias, dificuldade no acesso ao FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
Atuação O MPT não parou. Observou essas demandas e continuou com suas atividades tradicionais, inclusive em relação ao trabalho escravo. Emitimos 13 notas técnicas com recomendações sobre a pandemia; acompanhamos a elaboração de medidas legislativas como a MP 936; monitoramos as denúncias; trabalhamos no processo de mediação e também em ações de preservação do emprego, da empresa e da atividade econômica em si. Criamos, inclusive, um GT (grupo de trabalho) Covid para congregar as oito áreas do MPT na articulação do plano de trabalho da covid-19. O primeiro eixo é a articulação política para medidas legislativas que afetam as relações trabalhistas. O segundo foi o de articulação e negociação entre patrões e empregados. E também há um esforço em propor ações, de forma articulada, com os estados, para termos cada vez mais uma atuação por projeto.
Mediação Uma coisa curiosa da covid-19 é que ela atinge a todos. Atinge à população mais carente, mas, também, às atividades econômicas. Não dá para achar que alguém está isento. Os empregados estão sujeitos ao adoecimento e muitas atividades econômicas estão sujeitas ao fechamento. Então, buscamos soluções negociadas. O objetivo é sempre dialogar com o setor patronal e com os trabalhadores para construir consenso. A noção de solução negociada deve ser um dos maiores legados desse momento para a Justiça trabalhista. Os recursos obtidos em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) e decisões da Justiça do Trabalho, de R$ 284 milhões, foram revertidos para o combate à pandemia, com estruturação de hospitais e compra de equipamentos de proteção e respiradores.
Fiscalização Procuramos manter muitos canais abertos de denúncia por meio da tecnologia, para não haver redução nas queixas. Mantivemos as inspeções presenciais para casos urgentes, como o trabalho escravo, e ampliamos as virtuais. Sempre privilegiamos as inspeções in loco. Mas, com a pandemia, tivemos que adotar a virtual para não levar ou contrair a doença em alguns locais.
Tecnologia A Justiça do Trabalho é a mais eficiente em números de condenações e acordos. E também a mais rápida, porque já tem a tecnologia arraigada em seus processos. Há mais de cinco anos não tem papel no meu gabinete. Os inquéritos e investigações são todos virtuais. E nosso sistema de tecnologia é robusto. Isso facilitou a adaptação ao teletrabalho. Não houve interrupção no trabalho dos procuradores. Nem nos tribunais de segundo e terceiro grau, que já tinham histórico de virtualização de julgamentos e aumentaram as sessões virtuais. No primeiro grau, as audiências de conciliação estão sendo realizadas na maioria dos estados. Mas, houve uma dificuldade na instrução e nas provas periciais judiciais. Projetamos que, de fato, haja algum acúmulo de serviço que terá que ser equacionado no retorno às atividades presenciais.
Teletrabalho Houve um fortalecimento do home office e a tendência é de que essa atividade se mantenha após a pandemia. Porém, é preciso ter cuidado com a saúde e a segurança no home office. Não só na questão ergonômica, de procurar a cadeira e os equipamentos apropriados, mas, também, na organização do trabalho. É preciso separar jornada e convivência com a família. A Lei nº 13.467 regulamenta o teletrabalho, só que fala de algo residual. E agora é o contrário, quase 100%. O teletrabalho não foi uma opção, porque as pessoas tiveram que se recolher. Então, esse debate terá de ser feito caso a tendência continue, por exemplo, em relação à limitação da jornada e à separação do trabalho do horário de alimentação e de descanso. Home office
Há uma diferença entre home office e teletrabalho. O home office tem uma jornada definida, como se fosse o horário que você fica na empresa. O teletrabalho não. É como se você fosse um vendedor que ajusta seu horário à demanda. Mas é possível ter home office com a jornada correta, diferente do que tem ocorrido em alguns casos hoje. É uma coisa que precisa ser debatida. Já há formas de controlar a jornada sem bater ponto. Além disso, a CLT (Consolidação das Leis de Trabalho) prevê que haveria um aviso sobre as normas de segurança que o trabalhador deveria atender no teletrabalho, o que não foi possível na atual situação. Também é preciso discutir ergonomia e segurança. Nós fomos jogados para casa sem planejamento por conta da pandemia, mas o retorno, ou a continuidade disso, requer planejamento e envolve saúde, segurança e delimitação da jornada de trabalho.
Custos O artigo 175 da CLT diz que a responsabilidade do fornecimento dos equipamentos de infraestrutura serão previstos em contrato escrito. Só que essa condição parte do pressuposto de que será regulamentado no contrato, o que não aconteceu agora. Essa discussão foi lateralizada porque o teletrabalho foi quase compulsório. Mas é um debate que virá à tona ao fim da pandemia se o teletrabalho se institucionalizar. Muita gente está usando a própria banda de internet, que havia sido contratada para ver um filme no fim de semana e não para passar o dia inteiro em videoconferência. Então, terá que ser debatido o acesso às formas de produção, à internet, ao notebook, à cadeira, porque não está claro se é facultativo ou não. A CLT diz que será por comum acordo, mas o MP previa que não teria custos para o trabalhador.
Inviolabilidade Há um princípio constitucional de inviolabilidade do domicílio. Então, vamos ter que encontrar formas alternativas de fiscalizar o home office. Se não houver uma flexibilização, uma hipótese são as inspeções virtuais. Pode ser por telefone, gravações de vídeo, desde que preserve a intimidade e seja seguro. Havia certa resistência sobre esses elementos de prova, mas a tecnologia vai ter um peso cada vez maior em tudo.
Retorno Estamos exigindo planejamento na retomada. Não pode ser feito nenhum retorno no improviso. Tem que identificar os riscos, prover os equipamentos de proteção e os testes necessários, além de planejar as condutas que serão adotadas daqui para a frente. O retorno sempre está sujeito às orientações das autoridades sanitárias, não depende só do empregador, porque ainda há a vedação em alguns locais. Se a empresa exige o retorno sem atender às condições sanitárias, o trabalhador pode se recusar a voltar. Mas é uma coisa que deve ser investigada. Outro ponto é sobre o grupo de risco. Nós temos orientado que os trabalhadores vulneráveis permaneçam no home office enquanto não tiver condições de segurança plena.
Sanções O MPT está fiscalizando os locais que estão retomando as atividades para exigir o cumprimento das medidas sanitárias e do planejamento. Quem não respeitar essas medidas pode sofrer as punições cabíveis por descumprimento da legislação trabalhista. Pode haver a instauração de inquérito e ação civil pública, até com dano moral ou medidas sob pena de pagamento de pena. Medidas provisórias
Normas excepcionais devem vigorar apenas no período excecional. O governo tomou uma série de medidas para evitar demissões e preservar o emprego na pandemia. É preciso romper o ciclo de antagonismo entre empregado e empregador e fortalecer as negociações, que ocorreram em grande escala na pandemia. Os tribunais agiram muito, porque não é fácil sentar à mesa para negociar redução de salário, ninguém gosta, mas é um momento de preservação do emprego, em que concessões são necessárias. Porém, é preciso situar as medidas excepcionais no tempo oportuno. As medidas provisórias devem ficar restritas ao momento da pandemia para não trazer prejuízos ou discussões que desequilibrem as relações no futuro.
Precarização Há um risco de precarização do trabalho. Mas, tenho esperança de que os legados da pandemia e todo esse debate sobre os benefícios assistenciais mostrem que a renda é um elemento de consumo importante, é a base da economia. Muitas vezes, a desburocratização pode trazer mais economia do que mexer no direito das pessoas.
Desafios Na pandemia, vimos o quão importante é investir em saúde e segurança, buscar negociações e conciliações. Muita coisa que se baseia em falsos antagonismos conduz a relações de desequilíbrio. Então, são dois pontos que devem ter muito enfoque no pós-pandemia. O desafio será construir relações que preservam o emprego e a renda com saúde e segurança. Também vai haver o debate sobre as mudanças dos locais de trabalho. Porém, o maior desafio é que não dá para falar em fim de pandemia. O novo normal ainda não chegou.
Fonte: Correio Braziliense
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