Mercado afirma que sistema não reflete escassez de água para hidrelétricas e reduz estímulo a consumo consciente
O gasto adicional com o uso de térmicas a óleo diesel desde o início da crise energética, em outubro, já soma R$ 5,8 bilhões, valor que terá que ser rateado por todos os consumidores brasileiros, tanto as indústrias como clientes comerciais e residenciais das distribuidoras de eletricidade.
O mercado reclama, porém, que uma inconsistência no sistema computacional que calcula o preço médio da energia no país vem escondendo esse aumento e adia o repasse de parte dele para a conta de luz das famílias que recebem energia das distribuidoras.
O setor produtivo, que compra eletricidade no mercado livre, por outro lado, já começou a pagar a fatura por meio de encargos setoriais, o que vem gerando repasses ao custo de produtos e deve pressionar a inflação, que é suscetível a produtos com grande consumo de energia, como siderúrgicos ou material de construção.
Conhecidas no mercado como “Chanel número 5” (referência a um dos menores e mais caros perfumes), as térmicas a óleo geram 1 MWh (megawatt-hora) por até R$ 1.600. Diante da pior seca desde o início da série histórica, há 91 anos, essas usinas vêm sendo acionadas para ajudar a poupar água nos reservatórios das hidrelétricas.
Desde outubro, foram autorizados quatro despachos desse tipo pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), que, somados, custaram R$ 5,8 bilhões em encargos adicionais para os consumidores —R$ 686,4 milhões em outubro, R$ 1,3 bilhão em novembro, R$ 1,8 bilhão em dezembro e R$ 2 bilhões em janeiro.
No mercado livre, o custo das térmicas é pago por meio de encargos setoriais. Para clientes de distribuidoras, o rateio é feito por meio das bandeiras tarifárias cobradas sobre a conta de luz e nos reajustes anuais das tarifas, cujas datas variam de um estado para o outro. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, a revisão ocorre em julho.
Na avaliação do mercado, porém, o modelo atual de precificação não reflete totalmente a escassez de água nos reservatórios, o que cria uma falsa impressão de energia mais barata e reduz os estímulos ao consumo consciente, além de dificultar o planejamento das indústrias.
O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, foi informado dessas distorções pelas empresas e prometeu uma solução.
A formação do preço de referência da energia, chamado PLD (preço de liquidação de diferenças), é feita por um programa de computador, que considera fatores como os níveis dos reservatórios, as previsões de chuvas e o consumo de energia. Ou seja: mira o passado, segundo especialistas do setor.
O modelo atual prevê um preço máximo de R$ 583,88 por MWh. Mas, embora o país enfrente desde novembro a pior seca sobre as hidrelétricas dos últimos 91 anos, o PLD só bateu o pico durante três semanas em novembro. Na primeira semana de fevereiro, esteve, em média, em R$ 152 por MWh.
Para operadores do mercado, o descompasso entre o preço de referência e o custo das térmicas justificaria a manutenção da bandeira vermelha —maior nível da sobretaxa cobrada na conta de luz para custear as térmicas—, que vigorou em dezembro. Hoje, o sistema opera com bandeira amarela. Para o setor, o modelo atual não foi capaz de assimilar parâmetros de risco que, se estivessem incorporados, teriam elevado o preço médio.
Consultado, o Ministério de Minas e Energia informou que aperfeiçoa constantemente o modelo computacional de formação de preços. Em janeiro por exemplo, decidiu incluir o preço-horário para efeitos comerciais, mecanismo que aproxima o preço dos custos da operação.
Por meio de sua assessoria, o ministério diz ainda que existem prazos predeterminados para a internalização de mudanças nos modelos computacionais. Um dos itens de análise é a adoção do modelo de formação de preços por meio de oferta dos agentes.
“Esse modelo já é praticado em diversos países do mundo e deve ser implementado com previsibilidade e segurança, considerando as características da nossa matriz energética, com predominância de usinas hidrelétricas, sensíveis às condições hidrológicas”, diz a pasta em nota.
O cenário neste início de ano ainda é impactado por um problema na hidrelétrica de Belo Monte (PA), que terá de direcionar menos água para o reservatório por determinação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
A Norte Energia, que controla a usina, avisou o Ibama de que essa redução pode levar à paralisia total da geradora, que tem 11.000 MW de potência instalada. O mercado estima que essa medida possa acarretar um custo adicional de, no mínimo, R$ 4 bilhões. Essa situação também está levando diversas cadeias produtivas a rever seus preços.
Setores como siderurgia, construção civil e alimentação, que têm peso na composição da cesta da inflação, funcionam tendo a energia como insumo primordial.
Na fabricação do aço, a energia responde por mais da metade do preço. Na construção, 40%. Frigoríficos não vendem alimentos e carnes sem refrigeração. Supermercados precisam de freezers.
Na avaliação de economistas que conhecem o setor elétrico, o impacto na conta de luz residencial deverá ser diluído porque a maior parte desse encargo será distribuída na recomposição tarifária ao longo dos próximos 12 meses.
As indústrias —que arcam com 40% desses encargos imediatamente— é que repassarão preços para as mercadorias.
Um grande produtor de vidro para construção disse, sob a condição de anonimato, que pagou em encargos de energia em janeiro três vezes mais que a média dos últimos três meses de 2020. Para ele, não há outra saída a não ser remarcar preços das mercadorias.
Segundo a Abrace, associação que reúne os 50 maiores consumidores de energia, os contratos para a indústria são fechados tendo como base o preço de referência. Somente depois é que os compradores recebem uma fatura adicional com a diferença.
“É muito complicado para a indústria contratar energia para ter previsibilidade e depois ter de pagar R$ 40 por MWh por fora”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace.
“O mais grave é que só depois de ter produzido você descobre que vendeu seu produto com prejuízo. É incompatível ter situações de preços baixos no mercado de energia enquanto quase todas as térmicas estão gerando e a importação segue no máximo.”
Para a Abradee, que representa distribuidoras de energia, ainda não é possível estimar o impacto para o consumidor residencial. Por um lado, há pressões, como o elevado uso de térmicas e o início da cobrança do empréstimo tomado pelas empresas em 2020 para reduzir os reajustes.
“Não tem como precisar ainda se vai ter aumento ou não, mas o cenário traz preocupação”, diz o presidente da Abradee, Marcos Madureira.
Na quinta-feira (4), o Senado aprovou a chamada MP do Consumidor, que permite o uso de recursos de pesquisa parados nos cofres das empresas para pagar parte dos subsídios cobrados nas tarifas.
Folha de SP
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